Tenho ouvido e lido muito sobre o agora polêmico blog que a cantora Maria Bethânia pretende lançar, e para o qual conseguiu apoio do Governo Federal. A maior parte do que ouvi era de coisas sem nenhum fundamento, algumas pra lá do absurdo. Li inclusive que apoiar essa idéia é o mesmo que apoiar o atropelador de bicicletas (juro!).
A polêmica começou na última quarta-feira, quando o Ministério da Cultura divulgou autorização dada à artista para a captação de 1,3 milhão de reais junto à iniciativa privada, com benefício fiscal concedido pela lei Rouanet. Uma revolta tomou conta da internet quase que instantaneamente. A grande maioria achando isso o maior absurdo do mundo. Como não li nenhum argumento que me convencesse do contrário, e no intuito de contribuir com o debate, resolvi tecer alguns comentários sobre o assunto.
A Constituição Federal garante a todos o acesso à cultura. Significa dizer que o Estado não deve apenas proteger a liberdade de qualquer manifestação cultural, mas deve promovê-la e incentivá-la. Esse direito, garantido a todos, é um dever do Estado. No orçamento anualmente aprovado pelo Legislativo, todas as pastas, como saúde, educação, segurança etc., recebem um valor que deve ser aplicado em sua respectiva área. Isso põe por terra o primeiro argumento da grande maioria. Sim, talvez essa verba fosse mais importante para dar comida a quem tem fome ou construir uma nova escola. Mas no momento em que ela é destinada à cultura, e não à outra área, é ali que ela deve ser utilizada. Não é possível sua utilização em nenhuma outra coisa que não cultura. O administrador que fizer isso comete Crime de Responsabilidade, perde o cargo e pode responder civil e criminalmente. O que o governante pode fazer é escolher, dentro da área cultural, quais atividades vai promover. Os milhões de reais que o Ministério possui devem ser divididos apoiando cinema, teatro, música, dança, literatura etc.
Em relação a esse projeto especificamente, alguns esclarecimentos devem ser feitos. Muita gente parece ter lido apenas a manchete da notícia pra já sair criticando. Essa verba de mais de um milhão de reais não é para fazer um blog simplesmente. Nela está inclusa a produção de 365 vídeos, em que a cantora recitará poesias, que serão diariamente postados. Os vídeos terão direção de Andrucha Waddington. Conhecendo o trabalho dos dois, facilmente presume-se que não serão vídeos em que Bethânia estará sentada numa cadeira, num fundo infinito, declamando poemas. Isso não teria sentido. Serão vídeos artísticos, que contarão visualmente os poemas. Isso importa o trabalho por trás deles não apenas da cantora e do diretor, mas também de atores, roteirista, figurinista, maquiador, produtor, cabeleireiro, editor, cinegrafista, iluminador, contra-regra, assistentes, músicos. Somam-se a isso gastos com desenvolvimento do site e sua hospedagem, mais o trabalho de atualização diária. E não se pode esquecer dos direitos autorais que devem ser pagos a todos os autores que terão seus textos utilizados. Tenho certeza que esse trabalho, pela proporção e complexidade que tem, custou muito mais caro. A autorização para captar patrocínio é apenas para uma parte do custo.
Alguns, reconhecendo o valor artístico do projeto, questionaram apenas o valor do cachê da artista, que representa R$ 600 mil. Entendo que isso deve ser analisado sob duas perspectivas. A primeira é em relação ao tempo de trabalho. Não cabe pensar que Bethânia pegará um livro de poesias na prateleira e sairá recitando aos quatro ventos. Muito menos digitará no Google “poemas famosos” e terá uma lista pronta para utilizar. Há uma primeira fase nesse processo que é de pesquisa, onde serão lidos centenas de textos de inúmeros artistas, para chegar na seleção dos 365 mais adequados, não só pela relevância poética, mas para caberem nos 60 segundos que cada vídeo terá. Essa etapa levará semanas. Em um segundo momento, serão roteirizados e gravados. Trabalho que igualmente não é feito em uma tarde. Arrisco dizer que serão meses de trabalho. Meses em que a artista não estará gravando discos nem fazendo shows particulares. Apenas a título de ilustração, esse valor é o mesmo cobrado pelo cantor Roberto Carlos para fazer um show (quando não há participação nos lucros). Ivete Sangalo cobra a metade, são 300 mil reais por show. Inteligentemente, me parece, o dinheiro nesse caso foi utilizado para patrocinar uma atividade cultural bem menos efêmera que uma ou duas noites de show gratuito para o público. Sim, ele poderia ter sido aplicado em outros trabalhos de artistas não conhecidos. E grande parte do restante da verba do Ministério da Cultura foi destinada a isso. Quando uma empresa privada contrata um artista para estrelar sua campanha, está pagando não apenas a execução do trabalho em si, mas o valor agregado e a visibilidade que isso significa. Se eu ou você fossemos recitar poemas talvez ninguém parasse pra ouvir. Para que um projeto assim funcione, é preciso talento pra isso.
E muito embora a escolha do administrador nesses casos não possa ser questionada, uma vez que a escolha dos projetos que receberão patrocínio está dentro de sua margem de discricionariedade (vale lembrar que o projeto recebeu a aprovação não somente da Ministra da Cultura, mas também do Conselho Nacional de Incentivo à Cultura, que conta com representantes de artistas e de toda sociedade civil), ainda assim mais argumentos cabem em defesa do projeto. Maria Bethânia é uma artista séria, com mais de 40 anos de carreira, com inúmeros discos gravados. Foi a primeira mulher brasileira a vender mais de um milhão de cópias. Está em 8º lugar no ranking dos artistas brasileiros que mais venderam discos. Mesmo que alguns não gostem de suas músicas ou não gostem de poesia, o patrocínio foi dado a uma artista de respeito e prestígio, com uma carreira sólida. Não foi indiscriminadamente oferecido a um oportunista qualquer. E àqueles que argumentaram que Bethânia não está relacionada com poesia, vale lembrar que há décadas a artista vem gravando poemas em praticamente todos os seus discos.
E em tempos em que os livros andam tão esquecidos, e blogs e o youtube cada vez mais acessados, a idéia de aproximar essas ferramentas da literatura e proporcionar a divulgação de diversas obras relevantes me parece uma ótima idéia.